quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Uma dose não terminada - Parte 3*

* Para o entendimento deste conto não é necessário ter lido as partes 1 e 2.
 
 
Por: Allyne Pires
 
- Ela nem chegou a terminar aquela dose...
- É difícil dizer algo neste momento, sei o quanto vocês estavam sofrendo com tudo isso.
- Só fico pensando em seus últimos minutos e como será cuidar do Arthur daqui pra frente.
- Sempre estive aqui. Aliás, eu, a Marisa e nossos filhos. E não é agora que sairemos. Sabe que sempre o ajudaremos. Talvez não sejamos os melhores pais do mundo. Quantas vezes eles já se machucaram, mas trocar fraldas e dar de comer somos excelentes.
- Meus “sobrinhos” gordinhos. – um sorriso tentou ser esboçado em seu rosto, mas uma lágrima desprendeu timidamente.
O silêncio se instalou até o momento em que o pastor começou a falar.

***

Gustavo chegou a casa e o jantar já estava na mesa. Sua mulher sempre foi muito atenciosa. Estavam comemorando cinco anos de casado e ela preparou tudo de forma romântica. Até conseguiu arranjar suportes de prata para as velas e pratos magníficos.
Ele, com flores, espumante e um coração feito de madeira com um número 5 pirografado no meio – a explicação da mão toda machucada durante algumas semanas.
Os olhares dos dois se cruzaram e um sorriso se fez presente. Os olhos dos dois brilhavam com o mesmo sentimento de quando se conheceram. Ambos tinham um segredo e estavam ansiosos para contar.
Foi quando deu a última garfada e terminou a taça de espumante, que Gustavo decidiu pegar a caixinha no bolso de seu terno.
Um solitário fez arco-íris no teto.
- Eu amo você. Ainda não estamos na bodas de diamante, mas...
- Não sei como agradec... – Gustavo a interrompeu com um beijo acalorado.
Vermelha, ela se levantou para servir a sobremesa. Era a vez dela de contar a surpresa.
- Que chique, amor. Parece que estou em um restaurante grã-fino.
Levantou a tampa do prato, ao invés de comida viu um ultrassom. Com a caneta preferida dela estava escrito: três meses.
Um filme passou em sua cabeça e uma lágrima começou a surgir. Desde que tinham perdido um bebê nos últimos meses de gestação, há dois anos, vinham tentando ter outro filho e não conseguiam. Estavam quase perdendo a esperança.
Ele a puxou para perto e a abraçou, beijou sua barriga.

**

- O Arthur é lindo, cara, parabéns! A cara do pai.
- Está falando que tenho cara de joelho? Deixa ficar mais bonitinho e aí você fala que tem a minha cara.
- Gustavo! Nosso filho é lindo.

**

Júlia retornou ao médico para entregar os exames de rotina.
Para dar a notícia, seu médico não dourou a pílula.
- Júlia, você está com câncer.
O que foi falado depois, ela não prestou muita atenção. Tudo era de um som abafado e como se estivesse em câmera lenta. Só conseguia pensar em seu marido e em seu filho com pouco menos de um ano.
- Indico este médico para seu tratamento e já aproveito para deixar com a senhora estas orientações, e este panfleto sobre um grupo de apoio que temos aqui no hospital.
Ela pegou os papéis, suas coisas e foi embora. Depois entraria em contato para marcar o que fosse preciso.
- Não sei, amor. Ele disse que preciso começar o tratamento imediatamente.
- Você sabe que sempre estarei ao seu lado, Jú. Na saúde e na doença, lembra?
- Obrigada por estar ao meu lado, não sei como seria sem você.

**

- Amor... – uma voz fraca saía, sem força, mas com a mesma doçura de sempre – Precisa avisar... a enfermeira...
- Descansa, amor. Pode deixar que pedirei para ela trocar o remédio.
- Bom dia, Júlia! Vim trocar o remédio e também deixar a dose para tomar após a refeição. Mais tarde estou de volta.
Júlia não quis comer nada, ficou olhando para sua comida sem cor e sem sabor.
- Come, amor. Pelo menos uma colherada para tomar a dose de hoje.
Ela levou a colher a boca e pegou o copinho...
Gustavo não conseguiu chamar ninguém, deu um passo para trás e deixou os médicos agirem. Só conseguia escutar um bipe contínuo e ver uma linha reta no visor.

***

Gustavo só voltou para o momento em que estava depois que o pastor já tinha terminado de fazer o velório de sua amada.
- Gustavo, já vieram buscá-la. Vamos. A Marisa vai levar o Arthur e as crianças para casa.

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