O texto a seguir foi retirado do livro “Não espere pelo epitáfio...; provocações filosóficas”, de Mario Sergio Cortella (filósofo).
Há uma frase que é sempre proferida – quase beirando um chavão – quando em determinadas circunstâncias deseja-se cobrar de alguém uma postura direta, uma posição explícita ou, até, uma atitude
clara: Deus vomitará os mornos! Essa ameaça vale também quando se quer amedrontar aqueles ou aquelas que seguem pela vida afora sem nunca aproximar-se minimamente dos extremos, ficando sempre no ansiado ou proclamado como seguro “caminho do meio”, evitando-se, assim, qualquer risco de transbordamento ou ruptura da prudência.
Deus vomitará os mornos! Está lá no Apocalipse (último livro da Bíblia dos cristãos), capítulo 3, versículos 15 e 16: “Conheço tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, porque és morno, nem frio nem quente, estou para vomitar-te de minha boca”.
Essa admoestação colide frontalmente com um dos pilares da moral greco-romana desde a Antigüidade e que impregna com intensidade a moral do cotidiano: a virtude está no meio. Tal princípio, nascido como teoria completa no século 4 a.C., a partir da obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles, anuncia, três séculos após, um ideal de moderação e uma referência de tranquilidade expressos por um relato da mitologia trazido nas Metamorfoses do poeta latino Ovídio. Conta ele que Hélios (o Sol) tivera um filho, Faêton, com Climene, mas não acolheu a criança; quando Faêton cresceu, foi em busca do reconhecimento do pai que, tendo-o aceito, ofereceu como presente qualquer coisa que o rapaz desejasse. O pedido do jovem foi poder guiar o carro de Hélios, que antes o advertiu com a obrigação de manter-se eqüidistante do céu e da terra, dizendo-lhe que “pelo meio irás com a máxima segurança”; como o filho não o atendeu, desequilibrando e desviando o Sol, Zeus interveio e liquidou Faêton com um raio.
Ora, há dezenas de mitos, fábulas e histórias com a finalidade de exalta a exclusividade e preferência do caminho do meio; o que não se deve esquecer é que esse caminho pode também ser o da mediocridade. Em nome da sobriedade, da prudência e do comedimento, o máximo que se obtém em muitas situações é a mornidade mediana, regrada e constantemente refreada.
Nesse sentido, para não ser morno, é preciso ser radical. Cuidado! Em nosso vocabulário usual é feita uma oportunista confusão entre radical e sectário. Radical é aquele – como lembra a origem etimológica – que se firma nas raízes, isto é, que não tem convicções superficiais, meramente epidérmicas; radical é alguém que procura solidez nas posturas e decisões tomadas, não repousando na indefinição dissimulada e nas certezas medíocres. Por sua vez, o sectário é o que é parcial, intransigente, faccioso, ou seja, aquele que não é capaz de romper com seus próprios contornos e dirigir o olhar para outras possibilidades.
É preciso ter limites, mas, estará o limite exatamente no meio? Não é necessário ir até os extremos, mas é essencial não ficar restrito ao confortável e letárgico centro; muitas vezes o meio pode ficar anódino, inodoro, insípido e incolor. Alguns desses desejos de romper fronteiras mornas só aparecem nos epitáfios, sempre em forma nostálgica e lamentadora de um “eu devia ter...” Para além da mitologia grega, não é por acaso que outros Titãs têm sido tão festejados quando cantam de forma deliciosa e perturbadora (e muitos com eles): “Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer; devia ter arriscado mais e até errado mais, ter feio o que eu queria fazer”...
A sabedoria para equilibrar essas inquietações pode ser encontrada na reflexão feita no século 5 a.C. pelo filósofo chinês Confúcio: “Eu sei por que motivo o meio-termo não é seguido: o homem inteligente ultrapassa-o, o imbecil fica aquém”.
Radicalidade é uma virtude; o vício está na superficialidade.
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